O conto pode seguir desprezado por autores e críticos que enxergam nele apenas uma forma de teste para uma obra de fôlego maior ou ignorado pelo mercado editorial que costuma dizer que o gênero não vende tanto, mas segue vivo desde que surgiu nos primórdios da civilização em forma de história ouvida ao pé de uma fogueira. Lá na aurora do século XIX, muito antes do século XXI existir, o conto emancipou-se com escritores do calibre de E.T.A. Hoffmann, Edgar Allan Poe, Guy de Maupassant, Tolstói, Tchekhov, Machado de Assis, Balzac, Stendhal, Eça de Queirós, Aluízio Azevedo e toda a turma. No século XX, o conto atingiu sua maturidade formal e espatifou-se em miniconto, microconto, microrelato, flash fiction, conto brevíssimo, pequenos poemas em prosa etc. Por tudo isso, dizer que o conto vive uma “ascenção” nos dias de hoje é duvidoso.
Seja como for, o conto ganhou visibilidade e virou um assunto recorrente. Provavelmente, isso está acontecendo por três motivos: a) o gênero entrou no circuito dos festivais e prêmios; b) editoras e autores estão focados em publicar livros do gênero; c) mudanças na tecnologia (internet, celular e leitores digitais) e no comportamento social (ansiedade, pressa, falta de tempo livre etc,). Não sei se conseguirei destrinchar os três motivos com destreza, por isso, vou mais ilustrar do que analisar.
A Europa, os Estados Unidos e o Brasil tem um festival do conto. Na semana passada, escrevi sobre o assunto depois de conversar com Carlos Henrique Schroeder, idealizador do Festival Nacional do Conto (que está na 4ª edição e deve crescer nos próximos anos) e com Roman Simić, diretor do Festival Europeu do Conto (que está na 13ª edição). Ambos tem entre seus convidados autores iniciantes e veteranos e, ao longo desses anos, certamente contribuíram para jogar luz numa produção meio escondida ou desconhecida para muitos leitores. Assim fazem a roda girar porque encontram autores, críticos e fazem a obra circular entre leitores. Você pode não acreditar, mas esses festivais despertam o interesse do leitor. Outro ponto importante, do ano passado pra cá três autores que são conhecidos pela dedicação a forma curta foram contemplados com prêmios literários internacionais de peso: Lydia Davis ganhou o Man Booker Prize Internacional; Alice Munro ganhou o Prêmio Nobel de Literatura; e, dois meses atrás, George Saunders ganhou o Folio Prize (certo, além dos livros de contos, ele tem já publicou novelas, mas o prêmio foi para seu mais recente livro de contos). Nós ainda não temos nenhum prêmio literário dirigido exclusivamente ao gênero, no entanto nossos principais prêmios (Jabuti, Portugal Telecom, Prêmio SP de Literatura e Machado de Assis, para citar alguns) contemplam o formato. Em alguns casos a categoria divide espaço com crônicas - vai entender. Tá certo que o Jabuti nunca concedeu o prêmio de livro do ano para uma obra de contos. Quem sabe agora não pinta um desses?
Antes da internet, muitos jornais/revistas literárias (aqueles de crítica séria) costumavam publicar contos. Havia também as famosas antologias. Depois vieram os fanzines que ajudaram bastante a cena de autores independentes dos anos 80/90. Finalmente, surgiu a internet em seu formato comercial e popular que trouxe uma enxurrada de textos curtos e mais autores. Até que, de uns 5 anos para cá, as experiências de publicação digital ficaram mais acessíveis e começaram a virar realidade. Quem não lembra da revista Electric Literature? Recentemente, os editores criaram um blog chamado Recommended Reading que publica uma história por semana escolhida por alguém bacana. Por aqui existe a Cesárea, uma revista eletrônica com um formato parecido - só que um pouco menos multimídia. Outras experiências bem sucedidas são os selos Atavist e E-galáxia com a coleção Formas Breves. Eles também publicam um conto por semana que são vendidos exclusivamente para leitores digitais com preços baixos. Não me informei muito, mas parece que a Amazon também criou um serviço semelhante chamado Kindle Singles. Alguns autores também estão tentando o caminho da autopublicação - um pouco mais trabalhoso, mas ao que parece está ganhando contornos reais a cada dia.
Pense também que autores consagrados como Hilary Mantel e Margaret Atwood também vão entrar para a dança e prometem publicar livros de contos até o final do ano. O livro da Mantel vai chamar The assassination of Margareth Thatcher; da Atwood vai chamar Stone Mattres. Quem sabe, Eleanor Catton (The Luminaries tem mais de 800 páginas) e Donna Tartt (Goldfinch tem mais de 700 páginas) também não se animan?
O último motivo me parece diretamente ligado ao motivo anterior: as novas tecnologia dos celulares e leitores digitais estão ficando mais amigáveis. Veja, por exemplo, o fenômeno dos aplicativos para celular que permitem ler e acompanhar histórias curtas a todo momento. Além disso, existem esses aplicativos que são como redes sociais para você publicar e compartilhar pequenos textos e histórias com seus “seguidores”. Os leitores digitais também ficaram mais baratos, mais leves e emulam muito bem a sensação do papel (se é que isso realmente importa para quem gosta de ler). Me parece um caminho sem volta porque o comportamento social também mudou para “acompanhar” os “novos tempos”. Basta caminhar pela rua para perceber que muita gente está com os olhos e os dedos fixos no celular. Isso para não mencionar o fato de que muita gente reclama da falta de tempo para sentar e ler um livro - melhor pegar o celular.
O que o futuro nos reserva só o tempo dirá. Mas não se desespere, não saia por aí arrancando os cabelos ou investindo seu suado dinheirinho numa startup - a não se que você já tenha alguma experiência no negócios e saiba fazer investimentos. Não quero parecer apocalíptico, pelo contrário. Os livros longos (conhecidos como catataus) vão continuar existindo. A maior prova disso é o sucesso de vendas da monumental novela Game of Thrones - muita gente carrega aqueles livros para cima e para baixo nas ruas -, de Moby Dick, Os detetives selvagens e dos premiados The Luminaries e Goldfinch. Da mesma forma, o conto vai continuar vivendo, seja curto ou curtíssimo. A lição que fica é importa: as pessoas querem uma boa história, não importa a sua extensão.
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Aproveitando o assunto, para você que ficou empolgado e está buscando um livro que seja de forma breve tenho quatro recomendações:
Para a próxima mágica vou precisa de asas
ALEX EPSTEIN
Nau Editora
Seus minicontos mal ultrapassam o tamanho de uma página. Alguns tem o tamanho de uma linha. Você pode pensar em Lydia Davis, mas a verdade é que as histórias Alex Epstein são muito mais surreais e misteriosas. Passam um pouco ao largo daquele instante cotidiano que explode em significados quando ganham o olhar do narrador - marca de Davis. Tem qualquer coisa de Borges e Monterroso.
Tipos de perturbação
LYDIA DAVIS
Companhia das Letras
Talvez a autora dispense apresentações porque no ano passado seu livro foi bastante comentado por aqui, ganhou um prêmio importante e de quebra ela esteve na FLIP. Aqui as histórias são de uma sensibilidade enorme, tem humor e tristeza a partir de um ponto de vista muito particular. Vão de uma linha a três páginas. Tem qualquer coisa de Kafka.
Dez de dezembro
GEORGE SAUNDERS
Companhia das Letras
O livro entrou para lista de melhores do ano passado, foi finalista de vários prêmios e levou para casa o Folio Prize, dois meses atrás. A tradução acaba de chegar por aqui. Tem um pouco daquela tradição contística norte-americana de John Cheever e Raymond Carver, mas com uma pegada mais atual e tragicômica.
Estórias mínimas
JOSÉ RESENDE JUNIOR
7 Letras
É o caso de um autor cuja obra é inteiramente voltada ao conto - num português bem brasileiro. Os dois primeiros livros dele tinham contos mais longos, mas nesse livro ele pratica a forma brevíssima. Tem muito humor e doses demasiado humanas de amor e solidão na medida certa. Dá pra ler em menos de duas horas e apreciar para a eternidade.
Não resisti e vou recomendar também dois clássicos da forma curta:
Novelas nada exemplares
DALTON TREVISAN
Record
O autor mais recluso da nossa literatura (não perde nem para Rubem Fonseca e Raduan Nassar) é também o responsável por formatar o miniconto em nossas terras. Aqui ele faz referência ao famoso livro de Cervantes, mas enche Curitiba de tédio e a melancolia para desfilar histórias do submundo e da morte. Estão lá os suicidas, as prostitutas, as moças para casar, os homens comuns. Um detalhe interessante: o livro foi publicado em 1959 e marca a estreia de Trevisan na literatura brasileira. O crítico Otto Maria Carpeaux e o escritor Carlos Heitor Cony apontam o livro foi um divisor de águas.
A ovelha negra e outras fábulas
AUGUSTO MONTERROSO
Record
Infelizmente, o livro está fora de catálogo, mas tem uma particularidade: foi traduzido para o português por Millôr Fernandes e ilustrado por Jaguar. Não é possível encontrar nem em sebo. Quem sabe com a FLIP em homenagem a Millôr e a visibilidade dos minicontos, alguém tenha a bondade resgatá-lo. Monterroso é um autor guatemalco que passou a maior parte da vida no México. Ficou conhecido por ter escrito o menor conto do mundo O dinossauro (note que esse microconto não está nesse livro) e inspirou essa onda de formas curtas que explodiram na literatura de agora, agora. Tem formato humorístico e faz paródias com as fábulas da antiguidade clássica. Isaac Asimov disse que jamais foi o mesmo depois de ler O macaco que
quis ser escritor satírico (esse está nesse livro).
*Imagens: minilivro/reprodução Google Images; capas/divulgação.