domingo, 17 de outubro de 2010

DAVID MITCHELL: O CAMALEÃO

Outro dia, Kazuo Ishiguro disse que sentiu o espírito da velhice chegando quando se deparou com o primeiro romance escrito pelo inglês David Mitchell. Para Ishiguro, os livros de Mitchell tinham uma força imaginativa capaz de nos deixar de joelhos. A percepção não é compartilhada apenas por ele, críticos e leitores do mundo inteiro assinariam embaixo dessas palavras.

Pode parecer exagero, mas David Mitchell tem uma trajetória impressionante que justifica o excesso de elogio. Com apenas 41 anos, ele publicou cinco belos romances - todos são sucesso de crítica e público -, ganhou diversos prêmios importantes e foi três vezes indicado ao Man Booker Prize. Mitchell também foi citado pela revista Granta como um dos melhores jovens escritores britânicos. Seu estilo já foi comparado ao de escritores de peso como Tolstói, Dostoiévski, Mark Twain, Lawrence Sterne, James Joyce, Vladimir Nabokov, Thomas Pynchon, J.D. Salinger, Raymond Chandler, Don DeLillo, Haruki Murakami, William Gibson, Ursula K. LeGuin, Ítalo Calvino, Jorge Luis Borges e tantos outros.

O enorme talento de Mitchell vem de sua capacidade de contar boas histórias e de criar várias vozes diferentes para seus personagens. Ele é uma espécie de camaleão. Ghostwritten e Cloud Atlas, por exemplo, são romances que trabalham com múltiplas histórias contadas por personagens que pertencem ao passado, ao presente e ao futuro e todos são muito diferentes entre si e se conectam em algum aspecto. A maneira original de Mitchell de balançar as estruturas narrativas e mexer tanto na forma quanto no conteúdo lhe rendeu o rótulo de escritor experimental. Isso não deve servir como barreira para os leitores, Mitchell escreve livros cheios de humanidade.

Aqui no Brasil, seu único livro publicado é Menino de lugar nenhum - saiu pela Companhia das Letras. O romance conta a história de Jason Taylor, um garoto de 13 anos que vive com sua família na cidadezinha de Black Swan Green, na Inglaterra, em plenos anos 80. A maioria dos dilemas da adolescência são abordados com enorme originalidade e inventividade linguística. Taylor sofre por ser adolescente, por não figurar entre os garotos mais populares da escola em que estuda e por ser gago. Para escapar da truculência dos outros meninos, ele tenta de todas as maneiras não chamar atenção de ninguém. O casamento de seus pais também parece desmoronar aos poucos. Como pano de fundo, a Inglaterra da era Margaret Thatcher está concentrada na Guerra das Malvinas e na recessão econômica que assolou todo o mundo.

A proeza do romance vem de seu protagonista. Jason Taylor tem de enfrentar sozinho a dura tarefa de ser adolescente e aos poucos adentrar a vida dos adultos, como a gente na vida real. Acompanhando de perto essa fase da vida desse garoto, lemos passagens inteiras recheadas de uma imaginação fértil típica de alguém dessa idade: a velha da floresta, o menino morto no lago, os túneis secretos, a madame apreciadora de arte, o hospício da cidade - a gente não pode distinguir se Jason imagina ou vive de fato esses acontecimentos. David Mitchell disse uma vez que boas personagens são as únicas capazes de sustentar romances que lidam com experimentação de forma e conteúdo.

Menino de lugar nenhum é um romance em parte autobiográfico. Sua forma é mais convencional do ponto de vista da estrutura, mas isso não significa dizer que se trata de um romance menor. E o David Mitchell da vida real também é ligeiramente gago. Ele lida bem com isso falando mais pausadamente e pensando bastante no momento de responder perguntas - só por curiosidade, ouvi um podcast do Guardian que tem Mitchell como entrevistado.

Torço para que mais traduções dele cheguem por aqui. Acho que as mais urgentes são Cloud Atlas e o recente The Thousand Autumns of Jacob de Zoet.

*imagem: reprodução do New York Times.
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Um comentário:

  1. Rafael,

    O único livro que li do David Mitchell foi justamente Menino de Lugar Nenhum. Pode parecer pouco julgar apenas por esse livro, mas é um dos meus preferidos (junto de alguns do Jonathan Franzen, Michael Chabon, Saul Bellow e Philip Roth). Acredito que um dos grandes êxitos de Mitchell nesse romance é ter conseguido desenvolver a narrativa do ponto de vista de um garoto. Para um leitor adulto é difícil sentir empatia quando o autor não domina a técnica. Estou esperando por outro lançamento dele aqui no Brasil e até hoje não entendo porque a Cia das Letras não lançou mais nada. Até lá vou me arriscar nas edições em inglês.

    Abraços.

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