sexta-feira, 12 de agosto de 2011

FRAGMENTOS DE "OS MIL OUTONOS DE JACOB DE ZOET"

Daniel Galera postou no tumblr dele mais alguns trechos da tradução que está fazendo para The thousand autumns of Jacob de Zoet, de David Mitchell - em português deve ficar com o título Os mil outonos de Jacob de Zoet. A Companhia das Letras tinha previsão de lançar o livro nesse semestre, mas acabou ficando para o ano que vem. Enquanto isso, a gente pode matar a curiosidade com esses trechos:

"Da torre da igreja de Domburg, Jacob viu muitas ventanias chegarem a galope da Escandinávia, mas um tufão oriental tem algo de senciente e ameaçador. A luz do dia é violentada; a floresta se debate no crepúsculo prematuro das montanhas; a baía negra enlouquece com as ondas agitadas; golfadas de espuma do mar borrifam os telhados de Dejima; a madeira range e suspira. Os marujos do Shenandoah estão descendo a terceira âncora; o primeiro imediato dá berros inaudíveis no tombadilho. Para o leste, os comerciantes chineses e a equipagem fazem o que podem para proteger o que possuem. O palanquim do intérprete atravessa a Praça Edo vazia; a fileira de plátanos balança e chicoteia; não se vê nenhum pássaro voando; os barcos dos pescadores vão sendo arrastados até a margem e açoitados em grupo. Nagasaki está se recolhendo para uma noite das piores.”

"Ao se barbear, o homem relê sua mais fiel autobiografia.”

“Gaivotas voam em rodas raiadas de sol sobre telhados luzidios e palha desalinhada, fisgando tripas na feira e escapando por cima de jardins cercados, muros cobertos por lanças e portas de triplo cadeado. Gaivotas pousam nos frontões caiados, nos pagodes cheios de rangidos e estábulos cheios de esterco; circulam sobre torres e sinos cavernosos e sobre praças escondidas em que vasos de urina descansam ao lado de poços tampados, observadas pelos tocadores de mula e pelos cachorros com focinho de lobo, ignoradas pelos tamanqueiros corcundas; sobem pelo pedregoso Rio Nakashima ganhando velocidade e passam por baixo dos arcos de suas pontes enquanto são avistadas das portas das cozinhas e acompanhadas pelos fazendeiros que andam nas cristas elevadas e rochosas. Gaivotas furam as nuvens de vapor que saem dos tachos das lavanderias; sobrevoam milhafres desfiando cadáveres felinos; estudiosos vislumbrando a verdade em padrões ínfimos; adúlteros nas casas de banho; rameiras de coração partido; megeras desmembrando lagostas e caranguejos; seus maridos limpando cavalas nas lajes; filhos de lenhadores amolando machados; fabricantes de velas derramando ceras; oficiais de olhar ferino espremendo taxas; laqueadores estiolados; tintureiros de pele pintada; gente dizendo meias-verdades para acalmar; mentirosos mentindo sem piscar; tecedores de tatames; cortadores de junco; caligrafistas de lábios manchados molhando pincéis; livreiros arruinados por livros encalhados; damas de companhia; provadores; camareiros ; pájens roubando; cozinheiros com o nariz escorrendo; cantinhos escuros de sótãos em que costureiras fuçam nos calos dos dedos; trabalhadores fingindo doença; porqueiros; caloteiros; devedores mascando os lábios e esbanjando desculpas; credores que já ouviram tudo apertando o cerco; prisioneiros assombrados por vidas mais felizes e velhos devassos com a mulher dos outros; professores esquálidos provocados a dar broncas; bombeiros agindo como saqueadores de ocasião; testemunhas caladas; juízes comprados; sogras cultivando roseiras-bravas e rancores; droguistas amassando pilões; palanquins levando filhas que ainda não casaram; freiras taciturnas; putas de nove anos de idade; as outrora belas e hoje carcomidas; estátuas de Jizo sendo ungidas com ramalhetes; sifilíticos espirrando por narizes apodrecidos; ceramistas; barbeiros; mascates de óleo; curtidores; cuteleiros; carroceiros de excrementos; porteiros; apicultores; ferreiros e cortineiros; torturadores; amas de leite; abjuradores; batedores de carteira; os recém-nascidos; os que crescem; os firmes e os dóceis; os enfermos; os moribundos; os fracos e os inconformados; por cima do telhado de um pintor que se afastou primeiro do mundo, depois da família, para mergulhar numa obra-prima que se afastou de seu criador; até voltar ao mesmo lugar, até onde o voo teve início, sobre a varanda da Sala do Último Crisântemo, onde uma poça de chuva da noite passada está evaporando; uma poça na qual o Magistrado Shiroyama observa os reflexos borrados de gaivotas voando em rodas raiadas de sol. Esse mundo, ele pensa, abriga uma única obra-prima, que é ele próprio.”

“A verdade de um mito… não está nas palavras, e sim nos padrões.”

“Antes da chamada noturna, Jacob sobe na Torre de Vigia e tira o caqui do bolso do casaco. Os dedos de Aibagawa Orito deixaram marcas na fruta madura e ele encaixa nelas os próprios dedos, aproxima o presente das narinas, aspira sua doçura abrasiva e rola a sua redondeza sobre os lábios rachados. Me arrependo da minha confissão, pensa, mas que escolha eu tinha? Ele eclipsa o sol com o caqui: o planeta brilha alaranjado como uma lanterna de abóbora. Há uma espécie de poeira ao redor do chapéu e do caule pretos. Sem faca ou colher à mão, ele prende uma pontinha da casca cerosa nos indicadores e a rasga; o suco escorre pelo corte; ele lambe os pingos adocicados, suga fora um naco gotejante de carne filamentosa e o prende suavemente, suavemente, contra o céu da boca, onde a polpa se desintegra em jasmim fermentado, canela oleosa, melão perfumado, ameixas derretidas… e no coração da fruta ele encontra dez ou quinze pedras chatas, da mesma cor marrom e formato dos olhos asiáticos. O sol se foi agora, as cigarras calam, lilases e turquesas turvam e se diluem em cinzas sucedidos por cinzas ainda mais escuros. Um morcego passa a poucos metros, perseguido por sua própria turbulência felpuda. Não há o mais tênue sopro de vento. A fumaça sobe da chaminé da cozinha do Shenandoah e vai se desmanchando em torno da proa do brigue. As portinholas estão abertas e a água carrega o som de dez dúzias de marujos jantando no seu ventre; e como um diapasão posto a vibrar, Jacob reverbera com as partes e com o todo de Orito, com tudo que faz com que ela seja ela. A promessa feita a Anna arranha sua consciência como um esmeril, Mas Anna, ele pensa com desconforto, está muito afastada em milhas e anos; e ela me deu o seu consentimento, ela praticamente me deu o seu consentimento, e além disso ela jamais ficaria sabendo, e o estômago de Jacob ingere o presente escorregadio de Orito. A Criação não terminou na sexta noite, ocorre ao jovem. A Criação se desdobra ao redor de nós, apesar de nós e através de nós, na velocidade dos dias e das noites, e gostamos de chamá-la de Amor.”

David Mitchell, Os mil outonos de Jacob de Zoet via Daniel Galera.

*Imagem: hoita/reprodução do flickr.
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Um comentário:

  1. Mitchell é um bom escritor. Espero ver mais obras dele traduzidas aqui, em breve.

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