Daniel Galera postou no tumblr dele mais alguns trechos da tradução que está fazendo para The thousand autumns of Jacob de Zoet, de David Mitchell - em português deve ficar com o título Os mil outonos de Jacob de Zoet. A Companhia das Letras tinha previsão de lançar o livro nesse semestre, mas acabou ficando para o ano que vem. Enquanto isso, a gente pode matar a curiosidade com esses trechos:
"Da torre da igreja de Domburg, Jacob viu muitas ventanias chegarem a galope da Escandinávia, mas um tufão oriental tem algo de senciente e ameaçador. A luz do dia é violentada; a floresta se debate no crepúsculo prematuro das montanhas; a baía negra enlouquece com as ondas agitadas; golfadas de espuma do mar borrifam os telhados de Dejima; a madeira range e suspira. Os marujos do Shenandoah estão descendo a terceira âncora; o primeiro imediato dá berros inaudíveis no tombadilho. Para o leste, os comerciantes chineses e a equipagem fazem o que podem para proteger o que possuem. O palanquim do intérprete atravessa a Praça Edo vazia; a fileira de plátanos balança e chicoteia; não se vê nenhum pássaro voando; os barcos dos pescadores vão sendo arrastados até a margem e açoitados em grupo. Nagasaki está se recolhendo para uma noite das piores.”
"Ao se barbear, o homem relê sua mais fiel autobiografia.”
“Gaivotas voam em rodas raiadas de sol sobre telhados luzidios e palha desalinhada, fisgando tripas na feira e escapando por cima de jardins cercados, muros cobertos por lanças e portas de triplo cadeado. Gaivotas pousam nos frontões caiados, nos pagodes cheios de rangidos e estábulos cheios de esterco; circulam sobre torres e sinos cavernosos e sobre praças escondidas em que vasos de urina descansam ao lado de poços tampados, observadas pelos tocadores de mula e pelos cachorros com focinho de lobo, ignoradas pelos tamanqueiros corcundas; sobem pelo pedregoso Rio Nakashima ganhando velocidade e passam por baixo dos arcos de suas pontes enquanto são avistadas das portas das cozinhas e acompanhadas pelos fazendeiros que andam nas cristas elevadas e rochosas. Gaivotas furam as nuvens de vapor que saem dos tachos das lavanderias; sobrevoam milhafres desfiando cadáveres felinos; estudiosos vislumbrando a verdade em padrões ínfimos; adúlteros nas casas de banho; rameiras de coração partido; megeras desmembrando lagostas e caranguejos; seus maridos limpando cavalas nas lajes; filhos de lenhadores amolando machados; fabricantes de velas derramando ceras; oficiais de olhar ferino espremendo taxas; laqueadores estiolados; tintureiros de pele pintada; gente dizendo meias-verdades para acalmar; mentirosos mentindo sem piscar; tecedores de tatames; cortadores de junco; caligrafistas de lábios manchados molhando pincéis; livreiros arruinados por livros encalhados; damas de companhia; provadores; camareiros ; pájens roubando; cozinheiros com o nariz escorrendo; cantinhos escuros de sótãos em que costureiras fuçam nos calos dos dedos; trabalhadores fingindo doença; porqueiros; caloteiros; devedores mascando os lábios e esbanjando desculpas; credores que já ouviram tudo apertando o cerco; prisioneiros assombrados por vidas mais felizes e velhos devassos com a mulher dos outros; professores esquálidos provocados a dar broncas; bombeiros agindo como saqueadores de ocasião; testemunhas caladas; juízes comprados; sogras cultivando roseiras-bravas e rancores; droguistas amassando pilões; palanquins levando filhas que ainda não casaram; freiras taciturnas; putas de nove anos de idade; as outrora belas e hoje carcomidas; estátuas de Jizo sendo ungidas com ramalhetes; sifilíticos espirrando por narizes apodrecidos; ceramistas; barbeiros; mascates de óleo; curtidores; cuteleiros; carroceiros de excrementos; porteiros; apicultores; ferreiros e cortineiros; torturadores; amas de leite; abjuradores; batedores de carteira; os recém-nascidos; os que crescem; os firmes e os dóceis; os enfermos; os moribundos; os fracos e os inconformados; por cima do telhado de um pintor que se afastou primeiro do mundo, depois da família, para mergulhar numa obra-prima que se afastou de seu criador; até voltar ao mesmo lugar, até onde o voo teve início, sobre a varanda da Sala do Último Crisântemo, onde uma poça de chuva da noite passada está evaporando; uma poça na qual o Magistrado Shiroyama observa os reflexos borrados de gaivotas voando em rodas raiadas de sol. Esse mundo, ele pensa, abriga uma única obra-prima, que é ele próprio.”
“A verdade de um mito… não está nas palavras, e sim nos padrões.”
“Antes da chamada noturna, Jacob sobe na Torre de Vigia e tira o caqui do bolso do casaco. Os dedos de Aibagawa Orito deixaram marcas na fruta madura e ele encaixa nelas os próprios dedos, aproxima o presente das narinas, aspira sua doçura abrasiva e rola a sua redondeza sobre os lábios rachados. Me arrependo da minha confissão, pensa, mas que escolha eu tinha? Ele eclipsa o sol com o caqui: o planeta brilha alaranjado como uma lanterna de abóbora. Há uma espécie de poeira ao redor do chapéu e do caule pretos. Sem faca ou colher à mão, ele prende uma pontinha da casca cerosa nos indicadores e a rasga; o suco escorre pelo corte; ele lambe os pingos adocicados, suga fora um naco gotejante de carne filamentosa e o prende suavemente, suavemente, contra o céu da boca, onde a polpa se desintegra em jasmim fermentado, canela oleosa, melão perfumado, ameixas derretidas… e no coração da fruta ele encontra dez ou quinze pedras chatas, da mesma cor marrom e formato dos olhos asiáticos. O sol se foi agora, as cigarras calam, lilases e turquesas turvam e se diluem em cinzas sucedidos por cinzas ainda mais escuros. Um morcego passa a poucos metros, perseguido por sua própria turbulência felpuda. Não há o mais tênue sopro de vento. A fumaça sobe da chaminé da cozinha do Shenandoah e vai se desmanchando em torno da proa do brigue. As portinholas estão abertas e a água carrega o som de dez dúzias de marujos jantando no seu ventre; e como um diapasão posto a vibrar, Jacob reverbera com as partes e com o todo de Orito, com tudo que faz com que ela seja ela. A promessa feita a Anna arranha sua consciência como um esmeril, Mas Anna, ele pensa com desconforto, está muito afastada em milhas e anos; e ela me deu o seu consentimento, ela praticamente me deu o seu consentimento, e além disso ela jamais ficaria sabendo, e o estômago de Jacob ingere o presente escorregadio de Orito. A Criação não terminou na sexta noite, ocorre ao jovem. A Criação se desdobra ao redor de nós, apesar de nós e através de nós, na velocidade dos dias e das noites, e gostamos de chamá-la de Amor.”
David Mitchell, Os mil outonos de Jacob de Zoet via Daniel Galera.
*Imagem: hoita/reprodução do flickr.
sexta-feira, 12 de agosto de 2011
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Mitchell é um bom escritor. Espero ver mais obras dele traduzidas aqui, em breve.
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