segunda-feira, 8 de agosto de 2011

UMA CONVERSA COM PAUL HARDING

Por Tony Perez

A restauração das horas, de Paul Harding é um dos meus romances favoritos dos últimos dois anos (eu adoro quando o comitê do Pulitzer acerta), por isso, quando surgiu a oportunidade de entrevistá-lo para o Portland Mercury há alguns meses, eu aceitei na hora. Acho que ainda não dominei esse negócio da pergunta precisa para as respostas concisas (ou não poderia ajudar, mas somente sentar e ouvir alguém falar brilhantemente sobre a teologia da reforma protestante e da mecânica quântica... e como elas se relacionam com a ficção) porque o que era para ser uma entrevista de 550 palavras acabou ficando em cerca de 5000. Nem preciso dizer que eu tive de fazer um corte significativo. Felizmente, a internet não conhece o tamanho de uma coluna. Abaixo está a versão do editor para a entrevista.

Tony Perez: Pelo que ouvi, você recebeu um monte de cartas de rejeição antes da editora Bellevue concordar em publicar A restauração das horas. Agora que você já tem um Pulitzer e um prêmio PEN, existe alguém em especial para quem você gostaria de dizer "eu avisei"?

Paul Harding: Não. Eu tenho pessoas em mente e acho que elas sabem quem são. Pessoalmente, é muito frustrante ser rejeitado desse jeito; você trabalha aos poucos em seu romance, suas histórias, seus poemas e depois você encontra esse tipo de apatia do mundo editorial. Mas isso é muito comum para escritores. Eu olho para isso como o meu lugar nesse tipo de negócio. Autores de contos em especial... eles têm de manter planilhas do Excel com as revistas e as cartas de rejeição. Há todas estas histórias de pessoas decorando seus estudos com cartas de rejeição, então eu acho que eu só tenho a minha parte do lote de escritor.

TP: A restauração das horas não tomou o caminho típico rumo ao sucesso. Foi publicado por uma editora pequena e, pelo menos inicialmente, voou baixo sob o radar da maioria dos grandes meios de comunicação. Parece que o livro realmente decolou através do boca-a-boca. Você pode falar sobre o ímpeto do livro e quando você percebeu que os leitores foram se ligando nele?

PH: Sim. A Bellevue Literary Press fica no hospital Bellevue – o infame hospital Bellevue – e é atualmente um selo sem fins lucrativos que é publicado pela escola de Medicina da Universidade de Nova York. Então essa é a minha editora: a escola de Medicina da Universidade de Nova York. Como um editor de lá falou, o adiantamento foi simbólico. Eles não têm um orçamento de marketing ou qualquer coisa. Mas, felizmente, fizeram algumas primeiras cópias e havia, em particular, uma representante de vendas chamada Lise Salomon em São Francisco que leu o livro e o colocou debaixo do braço – tornou-se uma advogada dele, falando bastante antes da publicação. Ela meio que sente um burburinho acontecendo na costa oeste antes de qualquer coisa acontecer aqui. Mas o boca-a-boca começou um pouco antes da publicação – a Publisher’s Weekly deu uma boa resenha sobre ele. Tão logo as primeiras cópias saíram ficou visível o fato de que existe realmente uma livraria independente, vendendo de mão em mão, uma rede boca-a-boca de leitores apaixonados. O que é tão gratificante para mim sobre isso tudo é que ainda existem essas redes. Se você publicar um livro, mesmo através de uma pequena editora, ele pode encontrar seus leitores.

Foi na lista dos mais vendidos em São Francisco bem quando ele permaneceu por umas duas semanas. Eu fui lá e fiz algumas turnês, em seguida voltei para a costa leste e foi como se o livro nunca tivesse sido publicado. Mas paralelamente o livro continuou seguindo, o que pensávamos ser um bom sinal – não era só um pico de vendas inicial devido a uma campanha de marketing ou qualquer coisa assim. Meio que manteve a venda. Foi resenhado em um monte de grandes jornais da cidade, a New Yorker fez uma resenha, mas o New York Times não. Chamou a atenção das pessoas a maneira como o livro foi sendo trabalhado. Assim, bem antes do Pulitzer, sentimos como se fosse um sucesso. Estava recebendo opiniões respeitáveis ​​em todo o país e estava vendendo cada vez mais – eu pensei que aquilo era fantástico e muito mais do que eu jamais imaginei que iria acontecer. Três ou quatro semanas antes do Pulitzer ser anunciado, eu soube que eu tinha recebido um prêmio Guggenheim. Achei que aquela era a cereja do bolo. Então aconteceu o Pulitzer, e o PEN, do tipo efeito bola de neve. Para mim, novamente, assim que havia cinquenta exemplares impressos, era tudo esse tempero de São Francisco. O fato de ter sido tão difícil de publicar, eu estava mais ou menos me reconciliando a não conseguir publicá-lo, apenas fazer arte pela arte. Então, tudo posterior a isso, realmente, era só esse mesmo tempero.

TP: Como alguém que trabalha para uma pequena editora, sou encorajado a ver essas coisas acontecerem. Editoras independentes de todo o país ficaram felizes em ver a shortlist do Pulitzer sair, não apenas com A restauração das horas, mas com a coletânea de contos de Lydia Millet da editora Soft Skull [Love in Infant Monkeys].

PH: Com certeza, como viajei por aí, é tão surreal ser o protagonista neste tipo de coisa não-consigo-ser-publicado-para-o-Pulitzer. Mas para mim, o aspecto mais importante disso, o aspecto realista disso, é apenas aquela ideia de que há lugares lá fora, editoras independentes, que ainda podem publicar seus livros para as pessoas que querem encontrá-los. E com coisas como o Pulitzer, não existe correção. Editoras pequenas anunciaram que querem participar dessa competição. Nem todo mundo é um grande, um gigante rolo compressor corporativo. Parece, também, pela minha experiência, que editoras independentes estão onde a lista de autores medianos estão hoje em dia. O que é legal. Talvez você tenha que complementar a sua renda com o ensino ou o que quer seja, mas ainda é uma opção viável para ser um artista.

TP: Eu estou muito interessado na estrutura de A restauração das horas. É alucinante, e como tal, não está em dívida num cronograma rigoroso ou ponto de vista dos eventos. Como George se encontra em seu leito de morte, temos momentos dispersos, não só da sua vida, mas também das vidas de seu pai e avô. A estrutura foi algo que você impôs sobre o texto desde o início, ou só mais tarde se tornou clara?

PH: Foi um pouco das duas coisas. Parte disso vem da maneira como eu escrevo ficção. Eu faço as coisas tipo como colagem; eu escrevo pequenas passagens secundárias – conjuntos. Acho que quando escrevo ficção a coisa não vem completamente em episódios, mas em instantes. O instante em que Howard percebe que está deixando sua família. O instante em que George percebe que ele vai morrer. Eu passo muito tempo expandindo esses momentos. Sabe quando você compra um cortador de grama, olha para o manual de instruções e tem aqueles desenhos separados: as porcas, parafusos e pequenas partes das rodas. Isso é basicamente o que eu faço. Eu só expando esses momentos, analiso e olho para a personagem.

Mas também, em certa medida, o assunto se prestou a uma arquitetura associativa e não linear. Não só por causa da alucinação e desilusão de sua consciência, mas também porque muito do romance é interior – eu pensei nisso como se movimentar por associação, como a mente faz. Quando olhamos em pensamento para a vida que vivemos, ela não é linear. Nós a organizamos em padrões lineares, porque todos nós temos que colocar os sapatos e depois ir trabalhar, mas sua mente se move muito por associação. Então, o assunto e o meu método de escrita de alguma forma complementam um ao outro.

TP: Eu não costumo dar muita bola para o falatório antes do lançamento de um livro, mas Elizabeth McCracken [crítica americana] escreveu algo que realmente me marcou. Ela chamou o livro de um "manual de instruções sobre a maneira de olhar para quase tudo". Você parece obcecado com os mínimos detalhes – seja paisagem, animais, relógios ou um vendedor ambulante – e suas descrições seguem mais para a linguagem poética do que nós costumamos ver num monte de textos de ficção contemporânea. Quando você lê ficção, você é mais atraído para a linguagem e descrição do que para o enredo?

PH: Como leitor, com certeza. Mas observação e descrição são refratadas através da personagem – para mim, o enredo é um predicado da personagem. Então, quando eu descrevo em detalhes uma paisagem ou um artefato ou qualquer outra coisa, tudo é encurtado através de um indivíduo. Nunca é apenas uma paisagem descrita em detalhes; é uma paisagem da maneira como ela é apreendida por uma mente. Particularmente quando se trata de coisas relacionadas a paisagem e alguma densidade de linguagem, um dos santos padroeiros do livro, e da maneira como escrevo, é Wallace Stevens. A maneira como ele descreve o clima – as auroras do outono e a excitação do verão; o clima e as estações do ano como ocasiões para a comunhão da mente consigo mesma; o drama de consciência. Porque A restauração das horas é tão interior, senti uma espécie de consequente necessidade de ser o mais concreto possível com a linguagem. Inclinando-se muito sobre o abstrato e o conceitual, é fácil ficar boiando. Em A restauração das horas, esse cara está, basicamente, deitado na cama pensando, então todas as cenas e coisas sobre as quais ele pensa tinham que ter correlacionadas imagens literais e concretas, mesmo que isso permaneça iminente e físico e não simplesmente se dissolva em idéia pura.

TP: Uma coisa que realmente me impressionou em A restauração das horas é que você conseguiu canalizar uma tradição que remonta a uma série de escritores do século 19, mas não há nada arcaicos sobre o estilo ou idioma. Você pode falar um pouco sobre suas influências e como você foi capaz de tornar a escrita transcendentalista soar tão contemporânea?

PH: É, talvez eu pense nisso a partir de um ângulo ligeiramente diferente, mas eu vou fundo no espírito da coisa. Eu adoro os transcendentalistas. Emerson está no topo da minha lista. Thoreau não está muito atrás. Também penso em Hawthorne, Melville... mesmo Wallace Stevens vem desse tipo de tradição. Emily Dickenson – escritores assim. Algumas pessoas realmente pensam que A restauração das horas tem uma espécie de sensação arcaica, talvez porque se passa 90 ou 100 anos atrás, e vai ainda mais para trás. Algumas dessas coisas tem a ver com o fato de que eu gosto da idéia de despir algumas das distrações mais proeminentes da cultura material atual, que eu acho que pode configurar uma espécie de véu de ruído branco – é difícil ver ou ouvir o pensamento de alguém. Além disso, eu estava muito consciente quando eu estava escrevendo sobre o perigo, isso porque eu estava fazendo aquelas coisas e tinha essas afinidades. Eu estava consciente de que poderia cair numa prosa que soasse demasiado arcaico, que, então, soaria como muito educada. Eu acho que há uma espécie de formalidade na escrita, do tipo que faz parecer arcaico, mas eu tentei intencionalmente não usar sintaxe ou dicção arcaica – exceto em alguns lugares muito deliberados, principalmente nas citações de O horologista lógico [um livro fictício de 1783 que é citado ao longo do romance]. Eu tentei usar esse contraste; a prosa no resto de A restauração das horas não parece tão arcaica, porque ela é colocada junto de coisas que são intencionalmente arcaicas. Voltando a uma pergunta anterior, quando escrevo prosa eu me vejo como escrevendo poesia. É lírico, é pastoral – eu acho que por causa do meio transcendental – mas estou indo descaradamente para um tipo de densidade máxima de linguagem, imagem e significado em cada frase, sem que haja colapso sobre si mesma e se torne empolada ou impenetrável. Eu acho que talvez se você colocar todas essas coisas juntas, e mirar no ideal de precisão e exatidão, isso impede de soar arcaico.

TP: Há uma espiritualidade tranquila no seu trabalho que eu acho que está faltando em um monte de ficção contemporânea (o seu antigo professor Marilynne Robinson é uma exceção óbvia) e eu ouvi que você é um grande leitor de teologia. Gostaria que você falasse sobre como o seu trabalho ou seu pensamento é influenciado por pessoas como Karl Barth, ou Martinho Lutero. Ou até mesmo alguém como William James?

PH: Todas as pessoas que você acabou de menciona eu acho que você pode alinhá-las numa formação de desfile militar, todos eles vem da mesma tradição – o pensamento protestante reformado. Eu cresci aqui em Boston como um tipo de ateu neutro. Eu lia meu Nietzsche e mais nada, mas eu não era um ateu dogmático – eu não era doutrinário; eu não tenho nada contra a religião. Depois de ter estudado com Marilynne Robinson por muitos anos, me ocorreu que se eu lhe perguntasse de onde vinha sua fonte estética, intelectual, sua sofisticação e integridade emocional, ela certamente me diria que era de sua religião. Ela me diria que isso vinha de sua leitura desta tradição. Dado que eu respeito muito ela, eu estaria inclinado a respeitar a sua resposta, seu próprio cálculo de si mesma. Então, eu comecei a ler essas coisas e eu achei que eles eram incrivelmente belas – profundamente preocupado com a narrativa e a cosmologia. Foi muito mais do que a sujeira popular que você vê na imprensa entre Richard Dawkins e os Criacionistas – os pequenos rascunhos sujos dessas coisas. Quanto mais profundamente eu os leio, mais eu percebo que se você se isola dessas tradições de pensamento, você está se isolando da maior parte da história intelectual ocidental, até mesmo da maioria do pensamento Pós-Segunda Guerra Mundial. É quase como um tipo de censura, como "a religião é ruim para você, não perca tempo olhando para a teologia". Eu leio alguém como Karl Barth e é o pensamento humano mais bonito e esteticamente agradável que já eu encontrei. Em A restauração das horas, já que é ficção, eu não sou obrigado a me envolver em apologética ou oferecer provas, mas eu posso explorar as coisas. Eu posso brincar com elas de forma dramática e estética, e tipo ver como essas pessoas são responsáveis ​​por si mesmos em termos de concepções espirituais de quem eles são no universo.

Se você olhar para Emerson, ele era um ministro unitarista e deixou a igreja. Como você sabe, o censo comum sobre isso é ele deixou a igreja por pastos mais verdes. Mas se você olhar de fora para a tradição de que ele veio, há um forte argumento a ser construído de que ele deixou a igreja para encontrar Deus. Essa é a tradição protestante – pelo menos o pensando e a escrita com a qual eu estou familiarizado. Há um anti-autoritarismo embutido, a presunção de que a igreja institucional é uma construção humana; isso sempre vai endurecendo, e é antitético ao pensamento verdadeiramente piedoso. Para eles, o que realmente importa, é você e escritura. Os unitaristas romperam com os calvinistas; os calvinistas romperam com os luteranos; os luteranos romperam com os católicos; os católicos romperam com os judeus; os judeus romperam com os babilônios. É uma bela tradição, e parece bem ligada nesta compreensão de perseguição religiosa e desse tipo de pensamento. Os melhores teólogos, por exemplo, Karl Barth, viam a bíblia como uma obra de literatura e isso não rebaixa a sua autoridade normativa ou santa. Ele é um leitor atento do texto. É um uso muito mais sofisticado da imaginação e do intelecto. Faz você pensar sobre o que falamos quando falamos de Deus. Quando você olha para alguém como Dawkins, ele só perverte tudo isso dizendo: "se você acredita em Deus, você acredita em um homem velho de barba branca sentado num trono". É claro que isso é ridículo. Mas aí você percebe que pessoas como Dawkins nunca leram uma palavra de teologia, eles contam com o preconceito popular – ou em todo o positivismo materialista que compreenderam mal em suas, você sabe, 101 aulas de Wittgenstein. Se tudo é feito de matéria, e não há tal coisa como o espírito, então o que tudo isso significa é que não temos idéia do que é a natureza da matéria. Estou perfeitamente disposto a admitir que tudo é feito de coisas, mas isso só significa que nós não sabemos realmente o que são as coisas. Para mim, a teologia, a poesia e a arte caminham lado a lado com a física. Essa versão do materialismo é totalmente antiquada, fora de moda, a mecânica newtoniana. Eles estão sempre reclamando que não é testável, não é falsificável, mas os mais sofisticados experimentos da mecânica quântica só fazem a natureza da matéria mais ambígua do que jamais foi antes – está tudo dependente de observador. Se você é um escritor, há uma tensão muito legal anti-realista na mecânica quântica. Influência supraluminal e dependência da realidade do observador – tudo isso fala com a natureza experimental e participativa da consciência humana. Quando traduzidos para a ficção é parte da característica. Há uma passagem em A restauração das horas onde Howard está andando pela floresta. Quando ele se vira para olhar para a sua carroça, ele tem certeza de que cada vez que vira a cabeça tudo por trás dele desaparece ou muda. De certa forma, isso é apenas brincar com a física quântica, apenas em um sentido narrativo.

TP: O New York Times mencionou que o primeiro livro que você escreveu se passa em uma mina de prata mexicana do século 16. Será que o seu próximo livro vai uma mudança radical de A restauração das horas? Ou esse é o material que você ainda está interessado em trabalhar?

PH: Tenho pronto provavelmente 75% do primeiro rascunho do próximo romance. O título dele é Enon, que é a cidade em Massachusetts em que George Crosby morre. Em sua mente, era para onde ele fugia de sua juventude no Maine. É o nome colonial original de Wenham, a cidade em que cresci, um pouco ao norte de Boston. Portanto, este próximo livro é sobre um dos netos de George. Seu nome é Charlie Crosby. Ele faz uma pequena aparição em A restauração das horas. Então, é sobre ele e sua filha, Kate. A ação é subsequente àquela de A restauração das horas. Situado no mesmo local, mas não é uma sequência em si. Como Charlie faz o seu caminho através do enredo ou das circunstâncias do romance, George vai aparecer como parte do tipo de reservatório de memórias e pontos de referência de Charlie. Mas não é uma continuação da ação de A restauração das horas. Eu tenho uma idéia de retornar com um terceiro livro ligado a mesma família, para que eu possa criar a minha própria e pequena Nova Inglaterra Yoknapatawpha um dia desses.

Esta conversa foi publicada originalmente no blog da editora Tin House em 10 de janeiro de 2011. Ela reproduzido e traduzida para o português com permissão de Tony Perez.

*Imagens: retrato de Paul Harding reprodução de Pulitzer.org e capa do livro divulgação.


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