Dan Brown e Rick Riordan nasceram em junho de 1964 e por
serem recém-nascidos não tinham como saber o que se passava no Brasil, um
longínquo país da América do Sul. Eles tão pouco podiam imaginar que anos mais
tarde seriam dois dos maiores best-sellers da literatura "de
aventura", vamos dizer assim. O fato é que em 1º de abril daquele ano, as
Forças Armadas do Brasil tomaram o poder e instalaram no país o regime militar
- ou ditadura militar - que durou por vinte e um anos. Foi um período obscuro
para as liberdades individuais (houve censura brava aos meios de comunicação,
repressão, exílio e tortura para pessoas opostas aos ideais do regime etc.),
mas bastante iluminado para a cultura brasileira e para a nossa literatura,
especialmente.
Naquele ano de 64, enquanto Jean-Paul Sartre ganhava o
Prêmio Nobel de Literatura* e Saul Bellow publicava Herzog**, as editoras
Civilização Brasileira, José Olympio, Martins e Editora do Autor eram
responsáveis por alimentar as livrarias com uma enxurrada de livros de ficção.
Essa produção era absorvida pela crítica em revistas, jornais e suplementos
culturais que serviam como parâmetro para os leitores decidirem o que era
interessante ou não (foi um período áureo porque tínhamos a revista Senhor, a
Revista Civilização Brasileira, o suplemento literário do Jornal do Brasil
etc.).
Infelizmente, dados sobre as tiragens e a quantidade de
exemplares vendidos que poderiam apontar a circulação da nossa literatura entre
os nossos leitores dependeria de uma pesquisa mais aprofundada e não consegui
encontrar muita coisa. Considerando alguns dados do IBGE, não éramos um país de
muitos leitores (há quem considere que não somos até hoje), pois a taxa de analfabetismo
no Brasil na década de 60 era de 40,233% (faixa de pessoas com 15 anos e mais),
ou seja, quase metade da população era incapaz de ler. Assim, a literatura
brasileira era algo restrito a classe média que tinha dinheiro para consumir e
aos círculos estudantis - trocando em miúdos, era coisa de intelectual. Embora
a palavra "intelectual" soe pejorativa, vale dizer que durante todo o
regime militar (sobretudo até 1968 quando acontece o AI-5) os intelectuais
assumiram um papel central no debate político e na mobilização contra a
repressão/censura uma vez que a cultura era o único espaço possível para
exercício da liberdade.
A prosa de ficção brasileira publicada naquele ano não
refletia diretamente o espírito de chumbo dos anos que viriam. Talvez esse
papel estivesse reservado à crônica do período que saia diariamente nos
jornais, sobretudo no trabalho de Carlos Heitor Cony cujo ponto alto de combate
direto ao regime está em O ato e o fato, publicado naquele ano no calor da
hora***. Olhando para um conjunto delimitado de lançamentos do ano de 1964 e
sob um ponto de vista muito particular (o meu) considero que vivíamos um grande
momento de experimentação formal do romance capaz de garantir a nossa
literatura uma qualidade de alto nível - vide a prosa de introspecção de Autran
Dourado, Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles, o nonsense humorístico de
Campos de Carvalho e o jogo linguístico de Guimarães Rosa. Na outra ponta,
também tínhamos a força da literatura regional com caráter de denúncia - vide
Jorge Amado e José Cândido de Carvalho. No meio de campo tínhamos os contos
enxutos e inventivos de Dalton Trevisan - vale registrar que Rubem Fonseca
tinha acabado de publicar seu livro de estreia Os prisioneiros (1963).
Embora esse conjunto de obras seja primoroso houve uma
divisão de opiniões em relação às mudanças que a literatura sofreu por conta do
regime militar. Uma parte da crítica e da turma intelectual engajada
classificava os romances psicológicos como alienados porque não tomavam partido
da realidade social do país contra a política vigente. Já os romances realistas
daquele ano pareciam demasiado alegóricos para o radicalismo político e a
indignação com o estado das coisas. Foi com o endurecimento do regime nos anos
pós-64, fechando editoras, caçando seus editores e proibindo a publicação de
livros que nossa ficção pode absorver melhor a situação.
Um relato fidedigno, embora impregnado pelo espírito e pelo
momento em que foi escrito, está no artigo “Prosa brasileira em 1964: balanço
literário”, de Nelson Werneck Sodré (saiu na Revista Civilização Brasileira I,
em março de 1965). O tom é melancólico. O autor diz que golpe foi responsável
por interromper boas traduções de autores estrangeiros que estavam em curso e a
publicação de prosa de autores brasileiros foi pobre - o artigo termina com a frase "Fizemos pouco ou
fizemos muito, em 1964. Fizemos o que era possível". O destaque daquele
ano fica por conta da crônica, sobretudo de cunho político, e do ensaio, um
gênero que ganhava muito fôlego naquele momento.
Dito isso, fiz um levantamento informal e consegui encontrar
uma lista com onze livros de prosa de ficção brasileira daquele ano. Certamente
algumas coisas ficaram de fora. Tomei por base os nomes que ainda permanecem
nas seleções da crítica e do cânone acadêmico. Se alguém se lembrar de outros
livros, por favor, escrevam nos comentários.
O púcaro búlgaro
Campos de Carvalho
Civilização Brasileira
Verão no aquário
Lygia Fagundes Telles
Editora Martins
Manuelzão e Miguilim (Corpo de baile)****
João Guimarães Rosa
José Olympio
O coronel e o lobisomem
José Cândido de Carvalho
José Olympio
A paixão segundo GH
Clarice Lispector
Editora do Autor
A legião estrangeira
Clarice Lispector
Editora do Autor
Os pastores da noite
Jorge Amado
Martins
Uma vida em segredo
Autran Dourado
Civilização Brasileira
Antes, o verão
Carlos Heitor Cony
Civilização Brasileira
Morte na praça
Dalton Trevisan
Editora do Autor
Cemitério de elefantes
Dalton Trevisan
Civilização Brasileira
* Jean-Paul Sartre não só ganhou o Prêmio Nobel de
Literatura como o recusou alegando que "nenhum escritor pode ser
transformado em instituição".
** Trechos de Herzog, de Saul Bellow apareceram na revista
Esquire, em julho de 1961, mas a primeira edição impressa em formato livro foi
em 1964 pela editora Viking Press de Nova York.
*** Consta que durante a noite de lançamento, Cony
autografou mais de 1600 exemplares do livro.
**** A obra Corpo de baile, de João Guimarães Rosa é
composta por três novelas sendo que Campo geral, a primeira, foi publicado em
1956; em 1964, foi publicado Manuelzão e Miguilim com as novelas Campo Geral e
Uma história de amor.
Imagens: capa dos livros reprodução.