sábado, 10 de março de 2012

A LITERATURA COMO JOGO OU O JOGO DA LITERATURA




Lamento informar, mas o jogo que aparece no vídeo acima não existe. O site UCBComedy fez uma paródia de humor ácido com um jogo de tabuleiro chamado Pictionary em que grupos de jogadores tentam identificar palavras específicas a partir de desenhos feitos por seus colegas. No Brasil, o equivalente mais próximo desse jogo talvez seja o Imagem&Ação (me corrijam se eu estiver errado, por favor). No vídeo, a coisa ficou engraçada porque os jogadores tem de adivinhar palavras retiradas de livros de Cormac McCarthy, A estrada e Meridiano de sangue. Quem está mais familiarizado com o universo do autor sabe que qualquer sentença desses dois livros está recheada de imagens fortes, sombrias e macabras – notem que estou usando um certo eufemismo. Para termos uma ideia o jogo imaginário do vídeo vem acompanhado de uma ampulheta com areia negra e lápis feitos a partir de ossos de cavalos mortos. Reparem na jogadora tentando desenhar cadáveres e imaginem a si mesmos adivinhando do que se trata. É ou não é apocalíptico?



Deixando de lado a brincadeira fiquei pensando nos desdobramentos que a ficção está ganhando ultimamente. Cada vez mais aparecem notícias sobre obras virando jogos de tabuleiro e ganhando versões para videogames, sem mencionar as infinitas adaptações para o cinema, séries e especiais de TV etc. É como se a literatura estivesse adentrando o universo do entretenimento contemporâneo e virando um bem de consumo da indústria cultural. O fenômeno deve ser visto de forma positiva, afinal que mal pode haver nessa aproximação? Evidentemente, a obra de ficção sofre certos achatamentos na transposição para o novo meio. Infelizmente não existe outro jeito já que cada meio tem sua linguagem específica. Não dá para transformar a complexidade de alguém como o juiz Holden num jogo qualquer, por exemplo. No entanto, acredito que um adolescente pode criar interesse por Geoffrey Chaucer depois de jogar The Road to Canterbury; da mesma forma que qualquer pessoa pode ler Carta a uma senhorita em Paris, de Julio Cortázar depois de ter contato com Rabbits for my closet.


Um pouco dessa atmosfera permeou o #Casmurros_3 (terceira edição do fanzine com o tema videogame). Lá estão a versão 8 bits de O grande Gatsby, o aplicativo de Orgulho preconceito e zumbis, o game com gráficos alucinantes de Dante's inferno, as muitas versões de jogos para a obra de Jorge Amado e um texto divertido de António Xerxenesky imaginando clássicos da literatura como videogame. Curiosamente, também tem um texto de G. Christopher Williams sobre Cormac McCarthy e a dinâmica dos jogos eletrônicos.

Embora os desdobramentos da ficção sejam um campo repleto de oportunidades, a ideia por trás do fanzine também era mostrar como a literatura explora o conceito de jogo desde a "invenção" do romance no século XVIII. Por jogo estou me referindo as obras de ficção que trabalham com a forma a fim de acionar a astúcia do leitor diante do livro. Pense, por exemplo, nos romances escritos em mise en abyme (narrativas que contém outras narrativas dentro de si), nas brincadeiras com a linguagem típicas da OuLiPo e do noveau roman, no quebra-cabeça do enredo (saltando capítulos, indo e voltando no tempo), na ruptura da fronteira entre quem lê e quem narra etc. Tudo isso convida o leitor a participar da narrativa construindo o sentido do texto.

Na minha pesquisa sobre o assunto descobri que diversos estudiosos apontam A vida e as opiniões do cavalheiro Tristam Shandy, de Laurence Sterne como um livro pioneiro na "tradição" do jogo literatura. O narrador desse romance abusa das digressões criando uma espécie de enredo que nunca termina. Um novo assunto surge toda vez que pensamos que ele vai concluir algum acontecimento para finalmente acompanharmos uma história até seu final. Há também as muitas interferências gráficas (desenhos de cruz, círculos etc), as páginas em branco e as páginas com emblema bem no meio do livro.

Outros exemplos de jogo literário aparecem nos livros Dans le labyrinthe, de Alain Robbe-Grillet; Fogo pálido, de Vladimir Nabokov e finalmente na experiência seminal de O jogo da Amarelinha, de Julio Cortázar. Não posso deixar de mencionar também O castelo de destinos cruzado, Se um viajante numa noite de inverno... e tantos outros romances escritos por Ítalo Calvino.

Acho que ainda estamos por descobrir esse jogo literário em The atrocity exhibition, de JG Ballard; At Swim-Two-Birds, de Flann O'Brien (cujo o trecho inicial ganhou tradução no mesmo número do fanzine) e nos livros do escritor sérvio Milorad Pavic – que faleceu recentemente. Nenhum desses ainda foi publicado em português apesar de serem livros importantes na literatura contemporânea (ou pós-moderna, se você preferir).

Dificilmente esses livros vão ganhar versão em jogos de tabuleiro ou videogame. Resta ao leitor desafiar a si mesmo e encarar a iniciativa de decifrar o desafio, montar o quebra-cabeças e ganhar o jogo. Alguém se lembra de mais algum livro desse tipo?

*Imagens/Video: reprodução.

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2 comentários:

  1. Excellent story on games and literature! And I was grateful to see my own game The Road to Canterbury alongside the (alas, fictional!) Cormac McCarthy Pictionary! So many wonderful possibilities here.

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  2. Hello Alf! Glad to hear it directly from the creator of the game. I think The Road to Canterbury has not yet arrived in Brazil (I'm not sure). I wish much success to the game.

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