sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

A TENDÊNCIA AO FETICHISMO LITERÁRIO


O site Ponto Eletrônico publicou nessa semana um curioso infográfico com dados sobre a literatura brasileira contemporânea tendo como base uma longa pesquisa feita pela professora da UNB e crítica literária, Regina Dalcastagnè. É quase um perfil socioeconômico dos escritores brasileiros e das personagens que habitam os livros que eles escrevem. 

Infográfico que o pessoal do PontoEletrônico.
Olhando assim descompromissadamente (abandonando a seriedade acadêmica da pesquisa) não pude deixar de pensar na quantidade de listas, gráficos e infográficos com temas literários que estão surgindo por aí. A coisa toda vai desde o percentual de tristeza de Emma Bovary, passa pelas palavras mais usadas por Balzac e chega nos romances que terminam com a mesma palavra - como bem apontou Sérgio Rodrigues no Todoprosa (também foi daqui que eu peguei emprestado o termo "fetichismo literário" que dá nome ao meu texto).

Provavelmente devo estar cometendo um erro de parâmetro ao misturar o joio com o trigo. Afinal, grande parte dessas maravilhas visuais são brincadeiras "inúteis" que nos lembram que a literatura não precisa ser levada tão a sério o tempo todo - um pouco de humor é bom para dessacralizar. Não excluo o meu blog disso. No entanto, no caso específico desse infográfico sobre a literatura brasileira, a questão muda de figura porque vem envolvida pelo crivo da academia.

Gráfico que mostra dados sobre o comportamento das personagens em Madame Bovary, de Gustave Flaubert.

Notem, não estou questionando a seriedade ou os dados levantados pela pesquisa, mas vejo problema nas conclusões distorcidas que os leitores podem ter quanto tudo fica fora do contexto. Portanto, quando você for concluir alguma coisa sobre esse infográfico tenha em mente que o corpo de trabalho da pesquisa foi delimitado pelos seguintes fatores: 
"(1) foi escrito originalmente em português, por autor brasileiro nato ou naturalizado;(2) foi publicado pela Companhia das Letras, Record ou Rocco;(3) teve sua primeira edição entre 1990 e 2004;(4) não estava rotulado como romance policial, ficção científica, literatura de auto-ajuda ou infanto-juvenil."*
*Na própria pesquisa a professora explica direitinho porque escolheu trabalhar com esse recorte.

Portanto, não dá para dizer que a literatura brasileira atual tem essa cara do infográfico porque os dados estão dentro de uma delimitação e deixam de fora muita coisa. Sobretudo quando consideramos que a realidade editorial do Brasil mudou bastante de 2004 até hoje. Só para citar alguns fatores: tivemos a FLIP que espalhou e inspirou muitas feiras literárias por todo o país, os programas de incentivo a leitura do governo brasileiro (nas três esferas), a proliferação de escritores com a chegada da internet, a visibilidade da literatura produzida nas periferias das grandes cidades, a movimentação das editoras brasileiras e até a recente ascensão dos nossos escritores no cenário internacional.

***

Wordle, espécie de programa que contabiliza as palavras, aplicado a obra do escritor Balzac

Sempre que me deparo com essas listas, gráficos e infográficos me lembro do romance Se um viajante numa noite de inverno..., de Italo Calvino (escrito em 1979). De maneira resumida, o livro conta a história de um leitor que senta confortavelmente numa poltrona para ler mas um erro de encadernação interrompe a história no auge. O leitor volta a livraria, troca o livro e outro erro de encadernação acontece atrapalhando a leitura. Irritado, ele volta a livraria e assim acontecem várias coisas. Numa dessas reviravoltas ele conhece uma leitora chamada Ludmila, por quem se apaixona.

Pois bem, a leitora tem uma irmã chamada Lotaria - uma mocinha versada nos estudos acadêmicos - obcecada por encontrar nos livros nada mais que "ideias para um estudo crítico". O processo dela é simples: Lotaria põe o livro num computador e numa fração de segundos obtém uma lista de palavras de onde pode tirar suas "ideias" (tal qual pode acontecer nas listas, gráficos e infográficos da internet).

De alguma maneira, ela encarna a figura do leitor que não quer ser leitor - não perde tempo lendo e interpretando um livro. Ao reduzir os livros a mera estatística tudo fica empobrecido: livro, leitura, atividade crítica e mesmo criação literária.
"O que é de fato a leitura de um texto senão o registro de certas recorrências temáticas, certas insistências de formas e significados? A leitura eletrônica me fornece uma lista das frequências  o que me basta para ter uma ideia dos problemas que o livro propõe a meu estudo crítico. Naturalmente, as frequências mais altas são as registradas pelas listas de artigos, pronomes, partículas; mas não é nisso que detenho minha atenção. Concentro-me logo nas palavras mais ricas de significado, aquelas que podem dar uma imagem bastante precisa do livro". (Se um viajante numa noite de inverno... p. 191)
Sem parecer moralista, mas propondo uma reflexão: existe alguma maneira de ler um livro sem ler um livro?

*Imagens: reprodução dos sites em que os infográficos aparecem.

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3 comentários:

  1. Pessoalmente, acho esse tipo de infográficos descontraídos, como brincadeira que são. Não vejo um infográfico como esse realmente influenciando a opinião e a visão de um leitor consciente.
    Em resposta à reflexão, acredito que existam inúmeras maneiras de ler sem ler. Inclusive, acho até que essa não leitura acontece com mais frequência do que a leitura propriamente dita. Ler um livro, para mim, não consiste em somente ler o conjunto de palavras disposto em nossa frente. Mas sim decodificá-las, tirar um significado daquilo, fazer conexões, reflexões, encontrar afluentes até então desconhecidos nas linhas retas de pensamento e opinião que possuímos.

    Bj
    Livro Lab

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  2. Não entendi o que o termo fetichismo tem a ver com o post. De todo modo, a pesquisa serve justamente pra mostrar que aquilo que é tomado como literatura pelas três maiores editoras do Brasil não dá conta da diversidade do que é produzido no país. Mas até aí, nem seu blog dá.

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  3. acho q o autor do post passou batido do que realmente significa a pesquisa. é mais ou menos como uma pesquisa mostrar que as novelas da globo nao representam a diversidade do povo brasileiro pq a maioria dos personagens é branca, e aí alguém ridicularizar essa mesma pesquisa mencionando que no teatro de comunidade se mostra muito negro. tlz nao seja um acaso que seu blog só fale de livros hypados de grandes editoras (e é por isso que a pesquisa resolveu focar nelas). além do mais, o que vc entende por "fetichismo"? o que o termo tem a ver com a pesquisa? desculpe, mas a relação do termo com a pesquisa ficou muito mal explicado..

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