quarta-feira, 28 de agosto de 2013

SOBRE A LITERATURA E SEU TRABALHO SILENCIOSO

Martin Luther King na "Marcha sobre Washington por Trabalho e Liberdade" após seu histórico discurso popularmente conhecido como "I Have a Dream", nos Estados Unidos, em 1963
Três anos antes de Bob Dylan e Joan Baez cantarem "When the Ship Comes In" no mesmo palco em que Martin Luther King iria proferir o discurso mais importante da história sobre preconceito racial - popularmente conhecido como "I Have a Dream" -, uma moça branca do Alabama publicou um livro tido como um marco na luta pelos direitos civis dos negros norte-americanos. Estou falando sobre O sol é para todos, de Harper Lee publicado em 1960.

Joan Baez e Bob Dylan na "Marcha sobre Washington por Trabalho e Liberdade", em 1963
Aqui cabe uma afirmação direta: a literatura - ou mesmo as artes, de forma mais abrangente - não é capaz de promover mudanças sociais, embora muita gente diga o contrário. Como sabemos, estas acontecem muito mais por questões externas ao campo das artes (tais como: luta de classes, mobilizações de grupos, fatos históricos como a própria "Marcha sobre Washington por Trabalho e Liberdade" liderada por Luther King). O que não significa dizer que a arte ou a figura do escritor não possam promover o debate e a reflexão sobre temas caros a sociedade ou possa captar o espírito de uma época.

Colocando em perspectiva histórica, O sol é para todos encarna as ebulições sociais dos anos 60 e sua publicação foi algo muito inusitado para aquele momento, mas a verdade é que Harper Lee nunca esteve diretamente envolvida com movimentos sociais de luta por direitos civis. De maneira simplista, suas intenções eram discutir temas como o racismo e a injustiça social no sul dos Estados Unidos a partir de uma história verídica que ela presenciou na cidade onde morava quando tinha 10 anos. Ou seja, ela enxergava na sociedade e nesse episódio específico sentimentos tão fortes que a levaram a questionar o motivo de tudo aquilo.

Alguns críticos gostam de apontar outros dois pontos que enfraquecem a ligação entre o livro e a luta por direitos civis: primeiro, o tema central fala sobre o racismo e não sobre os racistas; e segundo, as personagens negras não são bem desenvolvidas e ficam restritas a tipos (caricatura). Não podemos desconsiderar as limitações de pontos de vista impostas naquela época que impediam a autora de escrever um livro mais 'avançado' nos costumes.

Para além dos temas, o sucesso do livro está ligado a maneira magistral como Harper Lee conduz a narrativa usando a voz cativante da personagem Scout Finch e explora suas sutilezas psicológicas. Há também a figura integra de Atticus Finch - o pai da pequena Scout. É um romance de formação bem estruturado, com uma linguagem cheia de ironias e recheado de riqueza visual.

Pode ser que Harper Lee não tenha mudado o rumo da história, mas certamente registrou com dignidade e grandeza a busca por justiça num período muito triste que apesar de todos as conquistas ainda não foi superado. Tomara que o aniversário do discurso de Luther King traga nova luz sobre a luta por direitos civis.

***

P.S.: sobre a questão racial na literatura alguém lembrou da quarta parte de O som e a fúria, de William Faulkner. Dilsey, a governanta negra da família Compson, encarna a fé e a esperança em meio a desgraça que abate a família. Arrisco dizer que este é um dos capítulos mais bonitos de toda a literatura ocidental.

Fotos: Martin Luther King - fonte difusa/reprodução; Bob Dylan e Joan Baez - sem autoria/Wikipedia; Capa/reprodução
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Um comentário:

  1. Excelente post, além de muito pertinente. Apesar de conhecer de nome, nunca soube muito sobre O Sol é Para Todos. Concordo sobre as artes não serem - infelizmente - capazes de mudanças sociais, apesar de promoverem discussões acerca delas. Também, as artes funcionam como um reflexo de todo o cenário social, contribuindo para "o enxergar", a tomada de consciência.
    Ainda há um bom caminho a ser percorrido nessa luta...

    Um beijo, Livro Lab

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